A escassez hídrica como oportunidade de grandes negócios
Helder Gomes
25 de outubro de 2024
Sabe quem está rindo à toa com essa história de escassez hídrica? Isso mesmo, os grandes banqueiros. Esta foi uma das conclusões do debate recente que realizamos no Espaço Thelema (@thelemact), no Centro de Vitória-ES, com o título “Fatos e mitos sobre a escassez hídrica”. Não deveria haver dúvidas sobre a aproximação de um colapso ambiental, ante a evidência de fenômenos climáticos sistêmicos de grandes proporções. No entanto, é preciso ficarmos atentos. Vivemos um momento em que a senilidade do capital força a mercantilização da natureza, convertendo o patrimônio natural em produtos escassos, forjando, assim, uma ideia bastante conveniente: “usa quem pode pagar por eles”.
Com isso, procuram tornar o acesso à água um negócio como outro qualquer e, dessa forma, ele deixa de ser um direito humano universal e se converte numa mercadoria. Além disso, a difusão da proposta de pagamento para captação e uso da água se impulsionou como oportunidade para a promoção de novos produtos especulativos, vinculando o controle centralizado das outorgas para uso da água aos mercados de serviços ambientais, cujo motor tem sido a emissão de títulos de carbono.
Devemos lembrar que a ideia de um mercado de créditos de carbono nasceu dos debates das cúpulas mundiais sobre a necessidade de reduzir a emissão de poluentes. No final das contas, ante a dificuldade de convencer o grande capital sobre a necessidade de controle da poluição que ele mesmo produz, as lideranças globais acabaram criando a ideologia do “poluidor pagador”, permitindo inclusive maiores níveis de emissão, desde que ela pudesse ser compensada com o pagamento por serviços ambientais (PSA). A coisa passou a funcionar como se fosse possível compensar a produção de gases tóxicos por meio do financiamento de projetos de plantação de árvores, por exemplo, mesmo que em países bem distantes da fonte poluidora.
Dessa forma, a difusão de poluentes na atmosfera continua a todo vapor, mas, com os acordos internacionais, abriram mais uma janela de oportunidade para a especulação com os tais títulos de carbono, atraindo o interesse de amplos segmentos sociais em participar do novo negócio.Dessa forma, a difusão de poluentes na atmosfera continua a todo vapor, mas, com os acordos internacionais, abriram mais uma janela de oportunidade para a especulação com os tais títulos de carbono, atraindo o interesse de amplos segmentos sociais em participar do novo negócio.
Fazer o exercício de compreender esses novos movimentos do capital em torno da mercantilização da natureza não tem sido fácil. No entanto, essa tem sido a perspectiva que motivou a criação do Observatório Capixaba das Águas e do Meio Ambiente, o qual procura subsidiar e mobilizar lutas, junto às organizações populares, contra a expropriação de mais esse direto essencial à vida: o uso universal das águas com qualidade e a proteção do meio ambiente de forma mais abrangente.
As primeiras abordagens
As atividades
iniciais do Observatório Capixaba das Águas e do Meio Ambiente vêm
apontando para a necessidade de maior compreensão dos novos negócios
envolvendo a gestão dos recursos hídricos. As tais janelas de
oportunidade surgem num contexto de grande complexidade, em que se
generaliza a orientação das agências e organizações multilaterais (BIRD,
FMI, BID, OCDE, G-20, entre outras) de que a saída para a crise
climática seria a mercantilização da natureza, privilegiando o que
consideram chave: a necessidade de novos arranjos institucionais de
governança, guiados pelos interesses dos grandes conglomerados
transnacionais.
A privatização dos serviços públicos de infraestrutura aparece, assim, como a grande panaceia do momento. No entanto, seriam necessários novas motivações para atrair o interesse das grandes empresas que operam em nível mundial, para alavancar os investimentos necessários e garantir a gestão privada desses serviços. Isso significaria reduzir os custos de transação e os riscos vinculados a um negócio que envolve a imobilização de grandes volumes de recursos monetários. No novo modelo de gestão partilhada, cabe ao Estado o ônus dos custos e riscos, deixando o terreno limpinho para os ganhos privados.
Pensando assim, o novo marco legal de concessões de serviços públicos de tratamento de água e esgoto, no Brasil, por exemplo, exigiu uma política de incentivos fiscais para a emissão de “debêntures do saneamento”, que são títulos privados de crédito, usados para financiar as contrapartidas das empresas concessionárias. Para os banqueiros e demais especuladores, essa nova modalidade de empréstimos é vista como geração de recebíveis, no longo prazo, impulsionando os mercados de títulos derivativos. Dessa forma, os grandes bancos lucram como sócios fundadores dos novos consórcios de empresas concessionárias, faturam alto na colocação das debêntures no mercado e, também, ganham especulando nos mercados de futuro com os recebíveis daí derivados.
O mito da inexorabilidade
A interpretação crítica
dessas novas modelagens permite afirmar que, ao contrário do discurso
forjado, sobre uma suposta tendência mundial, inexorável, as
privatizações dos serviços de infraestrutura tem sido, de fato, uma das
consequências do grande poder de comando exercido pelos grandes
conglomerados econômicos sobre as decisões governamentais, em suas mais
variadas instâncias: federal, regional e local.
Observamos que, quanto mais periférico o território abordado, maior a arbitragem do grande capital sobre as políticas governamentais, centralizando a agenda de desenvolvimento na consecução de seus interesses. No caso da região capixaba, fica cada vez mais nítida certa combinação de interesses, unindo a dominação vertical das empresas transnacionais com a mediocridade das elites locais, que tradicionalmente vêm se acomodando em catar as migalhas deixadas aqui pela acumulação predatória dos chamados Grandes Projetos (mineração, siderurgia, celulose e, agora, petróleo e gás natural).
De início, a ordem “de cima” exigiu a redefinição dos planos de ocupação do território, abrindo caminho para a instalação de grandes projetos industriais e de monocultura de eucalipto, por exemplo. As consequências dessa abordagem autoritária sobre o modo de vida e sobre a tradição cultural das comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas são bem conhecidas em nível estadual.
Em contrapartida às facilitações institucionais, a cada momento da tal inexorável necessidade de ampliação do parque industrial, o modelo centralizado de acumulação violenta sempre procurou estender oportunidades para a exploração de atividades econômicas suplementares. Dessa maneira, os grandes projetos abrem espaços, especialmente, para o crescimento da produção imobiliária e para os serviços de logística, envolvendo elites urbanas e rurais na rede de articulação política de legitimação dessa expansão predatória.
Todo esse movimento resultou na degradação ambiental e na expulsão das famílias trabalhadoras das áreas de interesse para os novos negócios que vão se multiplicando. A moda mais recente tem sido agregar, a essa histórica subordinação regional, a criação de oportunidades para a participação das elites locais no processo de difusão dos mercados de carbono. Desde os programas regionais tidos como de reflorestamento, passando pela privatização dos serviços de tratamento de água e esgoto, assim como pelo mais recente programa de transferência dos parques estaduais de conservação natural para a gestão privada, todos são motivados por esse objetivo implícito.
Com esse horizonte de cálculo, alterações legislativas vem criando oportunidades para a autorregulação empresarial sobre os instrumentos de fomento e de proteção ambiental, chegando ao limite do governo estadual promover a expansão de investimentos privados no interior de áreas de preservação ecológica.
O esforço do Observatório Capixaba das Águas e do Meio ambiente tem sido, portanto, procurar compreender a forma como esses movimentos político-institucionais estão interligados. Tem sido possível perceber, um pouco mais precisamente, que não se trata apenas de incentivar o desenvolvimento com o objetivo de gerar lucros com a expansão da monocultura de eucalipto, com a exploração dos serviços de tratamento de água e esgoto, ou, ainda, com atividades turísticas de grande impacto ambiental. A proposta é criar as condições para a integração das elites locais, mesmo que de forma marginal, no processo de mercantilização da natureza, de olho nas oportunidades criadas pelos mercados de crédito de carbono.
Publicado em www.comunicadigital.com.br