A prestação direta regionalizada nos serviços de saneamento e o PL n. 2.072/2023
Proposta que cria instabilidade no cumprimento da meta de universalização.
Luiz Alberto Rocha
26 de dezembro de 2024
Quadro geral do desenvolvimento da produção de infraestrutura
Tramita na Câmara dos Deputados proposta do NOVO que pretende alterar a Lei n. 11.445/07, que estabelece as diretrizes nacionais do saneamento, que foi fortemente alterada pela Lei n. 14.026/20 apostando na realização da política pública de saneamento a partir de investimentos privados visando universalizar o acesso à água e o tratamento de esgoto sanitário até 2033.
A centralidade da proposta do PL 2.072/2023 é “vedar a equiparação à prestação direta, sem licitação, a prestação dos serviços públicos de saneamento básico em determinado município realizado por entidade que integre a administração de outro ente federativo” Assim, vejamos primeiramente do que se trata a prestação direta regionalizada nos serviços de saneamento básico para, em seguida, discutir os méritos do projeto.
A questão da titularidade da competência federativa para o exercício do saneamento básico não teve indicação precisa na CF/88, razão pela qual o STF definiu a competência municipal, mas com atenuações devido à amplitude de circunstâncias técnicas do saneamento.
O temperamento da titularidade municipal do saneamento público efetivou-se pela prestação regionalizada por meio de gestão associada de forma voluntária ou de integração obrigatória na forma de região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião. Tudo a permitir ganhos de escala em favor da universalização e, ao mesmo tempo, a modicidade tarifária para que todos se beneficiassem dos ganhos sanitários.
Quando da mudança do parâmetro da política pública de saneamento foi aprovada e declarada constitucional, a prestação regionalizada ficou mais explícita ao estabelecer a possibilidade de prestação direta de interesse local pelos Municípios e DF, bem como a regionalização da prestação, em cooperação interfederativa entre Estado e Municípios, com objetivo declarado de cumprir o desígnio do planejamento e execução comuns.
O modelo de regionalização pós-14.026/20 que predomina é o das Microrregiões de Saneamento Básico em que se regionaliza a prestação sem suprimir a autonomia política dos Municípios que passam a decidir, em conjunto com o Estado, por meio de um Colegiado Microrregional que, dentro da governança microrregional, é o órgão máximo de deliberação sobre a prestação regional.
A prestação regionalizada permite que diversos arranjos regionais pudessem ser realizados visando permitir a sustentabilidade econômico-financeira apta à universalização.
Uma das possibilidades é que o Colegiado Microrregional autorize que a prestação seja realizada diretamente por ente integrante da administração pública de um dos integrantes da microrregião de saneamento. Aliás, o Decreto n. 11.467, de abril de 2023, previa a prestação regionalizada “por meio de órgão de sua administração direta, ou por autarquia, empresa pública ou sociedade de economia mista que integre a sua administração indireta”.
É certo que tal Decreto foi revogado pelo Decreto n. 11.599, de Julho de 2023, mas também é certo que a prestação direta regionalizada não foi proibida pelo novo Decreto, ainda mais porque ela é uma forma constitucional e legal de prestação que independente da previsão regulatória.
Aqui está o ponto de discórdia do NOVO, pois segundo a proposta a prestação direta regionalizada burla o princípio da licitação porque a prestação direta sem licitação só poderia ser feita diretamente pelo próprio titular do serviço. Ademais, o projeto, segundo a Comissão de Desenvolvimento Urbano, é válido para acabar com as discussões sobre o tema a favor da maior estabilidade no ambiente institucional ao promover a competição no mercado do saneamento e permitir a seleção competitiva do prestador de serviços.
A proposta, no entanto, enfrenta algumas barreiras que nos parecem difíceis de superar. Vejamos.
Em um primeiro lugar, há limite constitucional de regulamentação do setor de saneamento, pois a proposta pretende incluir restrição à autonomia política dos integrantes do Colegiado Microrregional de decidirem regionalmente sobre a prestação do saneamento básico que melhor atenda ao interesse público.
Ora, o modelo de prestação regionalizada foi seguido em diversos Estados brasileiros que criaram, por meio de lei complementar estadual, as microrregiões de saneamento para exercerem a função comum de planejamento, regulação, fiscalização e prestação direita ou contratada dos serviços públicos de saneamento básico.
Portanto, o desenho permite que a competência regional, por meio das microrregiões, garanta o exercício soberano da titularidade constitucional da prestação do saneamento no atendimento do interesse público. O que não pode ser reduzido por atividade legislativa posterior que pretende, inclusive, dar efeitos repristinatórios aos arranjos regionais já em vigor, acarretando a insegurança regulatória tantas vezes denunciada pela iniciativa privada.
Por outro lado, a lei nacional do saneamento permite que os Estados utilizem sua competência legislativa suplementar para regular a regionalização do saneamento, o que já foi feito. Logo, a proposta legislativa aqui tem alto potencial de violação da titularidade da competência regional de Estados e Municípios integrantes de microrregiões de saneamento.
Isto porque, definido o âmbito da competência regional pelo STF e formalizadas as microrregiões por lei complementar estadual. E ainda, deliberada soberanamente pelo Colegiado Microrregional que a prestação direta regionalizada melhor atende ao interesse público. É de se concluir que a proposta legislativa não pode inovar para restringir a autonomia político-constitucional dos entes federativos por estabelecer inconstitucional hierarquização do Legislativo da União com desrespeito à separação das funções do Poder e às autonomias federativas do Estado e Municípios integrantes da microrregião.
Ademais, a competência dos entes integrantes da microrregião em definir o melhor arranjo administrativo para a prestação do saneamento não pode ser substituída por uma decisão ex ante de agente externo e distante do cenário regional e, portanto, desconhecedor do modelo que melhor atende ao interesse público.
É de se presumir que a escolha do Colegiado Microrregional pela prestação direta regionalizada seja tão legítima quanto se o fizesse pela prestação indireta de empresa privada.
E ainda, diferentemente do que pretende a Justificativa do PL, se o Estado também é titular do saneamento quando formada a Microrregião, então a prestação realizada por entidade de direito público ou privada de qualquer dos entes titulares dos serviços públicos, inclusive o próprio Estado, é legitimamente sustentada pelo art. 175, CF/88, sem qualquer violação ao princípio licitatório.
Resta concluir que a prestação direta regionalizada não é decisão que “dispensa licitação”, mas trata-se de cooperação interfederativa para a prática de competência comum regionalizada decorrente da escolha do Colegiado Microrregional. E que respeita o exercício colegiado da competência de saneamento na esteira do entendimento do STF na ADI 1842/RJ.
Em conclusão, a proposta legislativa que pretende aperfeiçoar o marco legal do saneamento parece, smj, trabalhar em sentido contrário, ao promover alteração na modelagem jurídica vigente e já em utilização em alguns Estados brasileiros.
Deste modo, acaba por criar instabilidade no horizonte de investimentos já planejado nas microrregiões por restringir a escolha dos titulares de saneamento básico, inclusive com pretensão repristinatória, sem nenhum aparente ganho para o alcance das metas de universalização.